Em conversar com amigos, assistindo grandes pensadores e analistas, a gente se dá conta que há muito paralelo entre nossa trajetória na vida, desde a infância até a senescência, para aqueles que tem a graça de alcançá-la, com a trajetória das culturas e civilizações conhecidas.
A vida de cada ser humano pode ter diversos caminhos. Alguns mais ricos em recursos, alguns mais ricos em criatividade. Alguns sem nenhum recurso material, mental ou ambiental e com poucas oportunidades de revertê-las para um entendimento melhor da realidade. Mas todos em busca da sobrevivência com o menor custo possível diante das adversidades.
Estes recursos são muito marcados por circunstâncias que afirmam ou contradizem os valores que nos são transmitidos, ou mesmo que absorvemos veladamente, subliminarmente, e que vão nos tornando seres sempre em mutação de sentimentos e comportamento. Valores estes que tendem a dar uma resposta às nossas angústias e impotências diante do real. Valores que vão se adaptando às condições de “menos sofrer”, mesmo quando sofremos por falta de valores mais adequados às próprias circunstâncias da vida. A vida que é mutante, que é dinâmica e que nos negamos a admitir tal inconstância.
“Nada é permanente, exceto a mudança.” Heráclito
Assim vejo, de uma forma geral, a necessidade de pensamento mágico, de criação de mitos consagrados, que é quase que necessária a sua existência, quando da nossa infância. Quando não temos capacidade orgânico-mental para ter um pensamento estruturado e racional. Os mitos nos ajudam a entender o mundo de forma mais lúdica e ilustrativa. Nos passam valores que podem ser permanentes na vida inteira e que podem ser um molde grotesco de personalidades que vão ser nossas características sociais, familiares e até intrapessoais. Os mitos podem ser simplificações de situações mais complexas para as quais não temos uma explicação exata. Mas nos acalmam a mente. E eles nos são fornecidos pelos educadores familiares, curriculares e até os sociais (talvez os nossos influenciadores primitivos fora das redes sociais). Claro que quando exacerbados no seu valor absoluto não podem servir de substrato para o nosso evoluir mental e emocional, e sim pode nos aprisionar numa etapa que pode se prolongar além do ideal.
Adoro ler sobre teorias da pedagogia, pois os estudiosos, e os nem tanto, como doutrinadores baratos e interesseiros, por várias ocasiões, analisam o desenvolvimento da estrutura mental das crianças. Quando crianças somos dotados de pensamento não concreto. Mágico até. E isto nos ensina a criar uma visão mais bela do desconhecido. Com conceitos simples e que afirma a nossa condição existencial nesta fase inicial. É como o alvorecer. A luz solar vai dando indício de luminosidade, sem iluminar exatamente a paisagem, criando uma imagem distorcida, com bruma e névoas que é importante, pois nos dá a sensação que algo existe lá fora, mesmo sem saber exatamente o que é. Dá a sensação de que há algo lá fora. Não se vê bem o que é. Mas atiça nossa curiosidade e certeza que há uma paisagem.
As civilizações parecem também ter a fase de mitos, pois a partir deles o cérebro se satisfaz com alguma resposta diante do desconhecido. Isto é tão importante pois nos coloca numa posição ativa diante do mundo. Uma pedra, presume-se, não tem este questionamento. Ela é inerte ao que acontece ao seu redor. O ser humano não. Ele cria explicações, maquia a realidade para responder a questões que não temos como explicar exatamente como as coisas são. Criação de mitos são um alento ao nosso desconhecer. São úteis na fase certa. Todavia podem ser utilizados para o bem e para o mal. Para a dominação e para a libertação das mentes e corpos.
Mesmo cientistas avaliam como válidas, e até úteis, estas tentativas de explicar a realidade através dos mitos. São o substrato para o próximo passo a ser tomado. Não digo para a evolução, mas para a próxima etapa do pensamento.
E daí nos tornamos jovens. Inundados pelas explosões hormonais e o poder vital do organismo. Descobrimos muitas coisas que antes eram inexplicáveis. Desprezamos os mitos da infância, embora sentamos saudades deles por nos dar uma certa sensação de proteção, e nos apegamos às sensações, que por ser novas e prazerosas, nos fascinam, dando uma falsa ideia de poder infinito e possibilidades vastíssimas. Nos tornamos, às vezes insaciáveis. Desperdiçamos esta potência de existência com buscas que nos são impostas por outros “valores” desprovidos de embasamento útil para nossas ansiedades. É aí então, para os jovens de maior sorte, que há o contraponto com a experiência real e honesta dos mais experientes. Observamos que nosso furor vital é obscurecido pelo discurso do real. Nas civilizações e culturas humanas também acontece isto. Uma civilização que atinge o auge em riqueza e poder acha que pode tudo e sempre pensa em se expandir. Quanto mais segura está do seu potencial, mais próximo pode estar da sua ruína. Ás vezes a sensação de poder se torna grande que um dia ele pode nos devorar. E a realidade devora nossas certezas juvenis. Nos aquieta e nos faz, ou deveria no fazer, refletir. Há uma situação em especial no início da industrialização que me impacta. Houve quem no início da industrialização moderna que achava que tudo que tinha que ser inventado já o tinha feito. Isto no início do século XX. E agora? Comparando com a tecnologia atual? Sempre estamos criando algo novo e mais útil.
A fase da realidade, que nem sempre é uma constante, deveria se instalar com a maturidade. Com o senso de limites e possibilidades que a vida realmente nos oferece. Com o desfrute das conquistas materiais e imateriais. Isto pode acalmar nossa ânsia de realizações. Lutar pelo que é possível conquistar e aceitar as limitações da existência sem pensamento mágico ou dissimulador seria um estado harmônico ideal a ser buscado. As civilizações normalmente não chegam a este estágio. Sucumbem antes. Que benção seria envelhecermos com sabedoria suficiente para entender com prazer a vida passada e saber a essência da existência a ser transmitida com amor aos que estão por vir.
Adoro a citação do bardo (Shakespeare), num de seus épicos, quando lamenta a condição de um velho rei que apesar de idoso não tinha se tornado sábio.
Creio que a fase do mito, do heroísmo, na razão e da contemplação seria um bom destino humano e para as civilizações.
Rubem Cruz -CRM 5525 – Médico Ortopedista e Acupunturista.