Hoje eu vi um senhor que deveria ter mais de 60 anos, andando de bicicleta e puxando a reboque um carrinho cheio de papelão. Ele usava um chapéu de palha simples, tinha o rosto vincado pelo esforço e pela vida também. Estava muito quente naquela hora do dia. Aquilo me chamou atenção.
Parecia que aquele papelão todo eram suas memórias. As coisas que ele vivera até ali. Os momentos felizes, os momentos tristes, as decepções, as pequenas conquistas. Os sopros de esperança que batem na gente ao longo da vida.
Parecia que aquele papelão todo pesava como seus arrependimentos. As coisas que ele gostaria de ter feito, os lugares que ele gostaria de ter conhecido. Ou seriam as coisas que ele fez e não deveria? As brigas que ele se meteu. Os momentos de destemperança. As noites mal dormidas preocupados com o que por na mesa no outro dia.
Aquele papelão era pesado como os olhares de reprovação da sua esposa. As brigas que eles tiveram. Os filhos com pena daquele pobre pai. Ou ainda, o pequeno orgulho da família naquele natal tão esperado, com a casa cheia de parentes vindos de nem sei onde. O sorriso do primeiro filho. O primeiro tombo da sua menina tentando andar naquela bicicleta velha que ele tinha recolhido em algum canto da cidade.
O papelão fazia o barulho da buzina dos carros também. Ele tentando atravessar com aquilo tudo. Sem ser visto por ninguém. Mais um catador apenas. Mais um ninguém nessa ópera tão triste que pode ser a vida. O som distante da voz dos seus pais. Eles eram como ele, esquecido, sem estudo, sem muitas chances.
O papelão era o sermão do padre na missa de domingo. “Bem aventurados os que sofrem” dizia o sacerdote, e ele ria pensando: ”Mas precisa sofrer tanto assim?”. A hóstia, o vinho, a saída da missa com aquela roupa que era a melhor que ele tinha. As crianças correndo naquela algazarra de algum domingo perdido. O outro dia para catar mais papelão. Ou aquele dia mesmo, quem sabe.
Aquele papelão eram os cheiros dos lugares que ele passava. O cheiro ruim de algum depósito de entulhos. O mofo, a sujeira e o cheiro impregnado nele. O suor. O cheiro bom quando passava na frente de uma churrascaria. Lugar fino, coisa de gente abonada. Nada para seu bico.
Aquele senhor carregando o papelão me fez pensar em tantas coisas que nem caberiam aqui. Um pensamento para cada volta do pedal. O sol batendo abrasador e inclemente. A rua irradiando calor de volta. E outra volta, e outra volta. Mais um dia que ele via passar.
Carlos Eduardo dos Santos Martins – Anestesiologista – CRM/PR – 20965.